sábado, 16 de novembro de 2013



Ante-metamorfose
Jorge de Sena


Ao pé dos cardos sobre a areia fina
que o vento a pouco e pouco amontoara
contra o seu corpo (mal se distinguia
tal como as plantas entre a areia arfando)
um deus dormia. Há quanto tempo? Há quanto?
E um deus ou deusa? Quantos sóis e chuvas,
quantos luares nas águas ou nas nuvens,
tisnado haviam essa pele tão lisa
em que a penugem tinha areia esparsa?
Negros cabelos se espalhavam onde
Nos braços recruzados se escondia o rosto.
E os olhos? Abertos ou fechados? Verdes ou castanhos
no breve espaço em que o seu bafo ardia?
Mas respirava? Ou só uma luz difusa
se demorava no seu dorso ondeante
que de tão nu e antigo se vestia
da confiada ausência em que dormia?
Mas dormiria? As pernas estendidas,
com um pé sobre outro pé, e os calcanhares
um pouco soerguidos na lembrança de asas;
as nádegas suaves, as espáduas curvas
e na tão leve sombra das axilas
adivinhados pelos...Deus ou deusa?
Há quanto tempo ali dormia? Há quanto?
Ou não dormia? Ou não estaria ali?
Ao pé dos cardos, junto à solidão
Que quase lhe tocava do areal imenso,
Do imenso mundo, e as águas sussurrando -
– ou não estaria ali?… E um deus ou deusa?
Imagem, só lembrança, aspiração?
De perto ou longe não se distinguia.


Originalmente publicado como “Metamorfose” (Fidelidade , 1958), o poema é renomeado “Ante-metamorfose” em 1963, passando a primeiro poema, ou “ante-poema”, do livro Metamorfoses.

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