(extracto de)
Génio de Giorgio Agamben, em Profanazioni (Profanações), 2005:
Uma expressão latina
exprime maravilhosamente a relação secreta que cada um de nós deve saber manter
com o seu Genius: indulgere Genio. É preciso consentir ao
nosso Genius, abandonarmo-nos a ele,
devemos ceder-lhe tudo quanto ele nos pede, porque as suas exigências são as
nossas, a sua felicidade a nossa felicidade. Mesmo quando as suas pretensões –
as nossas pretensões – possam parecer
pouco razoáveis e caprichosas, é bom que as aceitemos sem discutir. Se, para
escrever, tendes necessidade – se ele
tem necessidade – desse papel amarelado, dessa caneta especial, se é necessário
precisamente essa luz pálida que tomba à vossa esquerda, é inútil dizermo-nos
que toda a caneta qualquer que seja servirá e que todo o papel como toda a luz
são bons. Se não vale a pena viver sem essa camisa de linho celeste (e por
piedade, sobretudo não a branca com o seu pequeno colarinho de empregado), se
sentimos bem que não podemos consegui-lo sem esses cigarros longos de papel
negro, de nada serve repetirmo-nos que tudo isso são manias e que já é tempo
de, finalmente, pôr nelas alguma ordem. Genium
suum defraudare, defraudar o seu próprio génio, significa em latim:
envenenarmo-nos a vida, fazermo-nos mal. Genialis, genial, pelo
contrário, essa vida que afasta o olhar da morte e responde sem rodeios ao élan
do génio que a engendrou.
Mas esse deus tão íntimo e
tão pessoal é também aquilo que em nós é mais impessoal, a personalização
daquilo que, em nós, nos ultrapassa e nos excede. “Genius é a nossa vida, enquanto ela não encontra em nós a sua
origem mas nós encontramos a nossa nela.” Se ele parece identificar-se
connosco, não é senão para se revelar imediatamente a seguir como mais do que
nós, para nos mostrar que nós somos menos e mais do que nós mesmos. Compreender
a concepção do homem que o Genius encerra
significa compreender que o homem não é apenas Eu e consciência individual, mas
que, do seu nascimento à sua morte, ele coabita com um elemento impessoal e
pré-individual. É portanto dizer que o homem é um ser único a duas fases que resulta
da dialéctica complicada entre uma parte que não é (ainda) individuada e vivida
e uma parte já marcada pelo destino e pela experiência individual. Mas essa
parte impessoal e não individuada não é um passado cronológico que nós deixámos
para trás de uma vez por todas e que podemos, eventualmente, recordar através
da memória; ela está sempre presente, em nós, connosco e inseparável de nós, no
bem como no mal. A face adolescente de Genius
e as suas longas asas palpitantes significam que ele não conhece o tempo, que
nós o sentimos palpitar bem perto de nós, em nós, como quando éramos pequenos,
respirar e bater aos nossos ritmos febris como um presente imemorial. Eis
porque o aniversário não pode ser a comemoração de um dia passado, mas, como
qualquer festa verdadeira, abolição do tempo, epifania e presença de Genius. É essa presença inamissível que
nos impede de nos fecharmos numa identidade substancial, é Genius quem desfaz a pretensão do Eu a bastar-se a si mesmo.
A espiritualidade, poder-se-á
ter dito, é antes de tudo o mais essa consciencialização do facto de que o ser
individuado não é completamente individuado, mas encerra ainda uma certa carga
de realidade não individuada que convém, não só conservar, mas também respeitar
e, de algum modo, honrar como honramos as nossas dívidas. Mas o Genius não se refere apenas à
espiritualidade, ele não diz respeito apenas às coisas que estamos habituados a
considerar como as mais nobres e as mais altas. Tudo o que há em nós de
impessoal é genial; genial, antes de mais, a força que leva o sangue a pulsar
nas veias ou que nos leva a afundarmo-nos no sono, genial, a potência
desconhecida que regula a vida do nosso corpo e distribui com tanta suavidade o
seu calor e que distende ou contrai as fibras dos nossos músculos. É Genius que nós pressentimos obscuramente
na intimidade da nossa vida fisiológica, onde o mais próximo é o mais estranho
e impessoal, onde o mais íntimo é o mais distante e menos controlável. Se nós
não nos abandonássemos a Genius, se
fôssemos apenas Eu e a consciência, não poderíamos sequer urinar. Viver com Genius significa, neste sentido, viver
na intimidade de um ser estrangeiro, mantermo-nos constantemente em relação com
uma zona de não-conhecimento. Mas essa zona de não-conhecimento não corresponde
a um recalcamento, não consiste em deslocar e desviar uma experiência da
consciência para o inconsciente, onde ela se sedimentaria como num passado
inquietante prestes a aflorar sob a forma de sintomas e de neuroses. A
intimidade com uma zona de não-conhecimento é uma prática mística quotidiana,
durante a qual o Eu, numa espécie de esoterismo especial e jovial, assiste, com
um sorriso nos lábios, à sua própria derrocada, e quer se trate da digestão dos
alimentos ou da iluminação do espírito, testemunha incrédulo o seu
desfalecimento. Genius é a nossa
própria vida enquanto esta não nos pertence.
Devemos então considerar o
sujeito como um campo de tensões cujos pólos antitéticos são Genius e Eu. O campo é atravessado por
duas forças conjugadas mas opostas, uma que vai do individual ao impessoal,
outra que vai do impessoal ao individual. As duas forças coabitam,
entrecruzam-se, separam-se, mas não podem nem dividir-se totalmente nem
identificar-se plenamente. Qual é então para mim a melhor maneira de testemunhar
do Genius? Suponhamos que Eu queira
escrever. Não escrever tal ou tal obra, mas simplesmente escrever. Esse desejo
significa isto: O Eu sente que algures Genius
existe, que ele é em Eu uma força impessoal que incita à escrita. Mas a última
coisa de que Genius tem necessidade é
de uma obra, ele que nunca pegou sequer numa esferográfica, nem, a fortiori, num computador. Escrevemos
para nos tornarmos impessoais, para nos tornarmos geniais, e contudo, ao
escrever, individualizamo-nos como autores de tal ou tal obra, afastamo-nos de Genius, que não pode nunca ter a forma
de um Eu, e menos ainda a de um autor. Toda a tentativa do Eu, do elemento
pessoal, para se apropriar de Genius,
para o obrigar a assinar em seu nome encontra-se necessariamente votada ao fracasso.
Daí a pertinência e o sucesso das operações irónicas como as que foram levadas
a cabo pelas vanguardas, onde a presença de Genius
é atestada pela des-criação, pela destruição da obra. Mas se é verdade que só
uma obra invalidada e desfeita poderia ser digna de Genius e que o artista verdadeiramente genial não tem obra, o
Eu-Duchamp não poderá jamais coincidir com Genius;
perante a admiração geral, ele vagueará pelo mundo como a prova melancólica da
sua própria inexistência, como o carregador tristemente célebre da sua própria
ausência de obra.
É por isso que o encontro
com Genius é terrível. Se pudermos
definir como poética a vida que habita na tensão entre o pessoal e o impessoal,
entre Eu e Genius, deverá chamar-se
pânico ao sentimento de que Genius nos excede e ultrapassa por todos os lados e
de que algo nos cabe de infinitamente maior do que o que acreditamos poder
suportar. Daí que a maior parte dos homens se ponham em fuga assustados face à
parte impessoal que os habita ou tentem, hipocritamente, reduzi-la à sua
própria minúscula estatura. Pode então acontecer que o impessoal recalcado
volte a surgir sob a forma de sintomas ou tiques mais impessoais ainda, sob a
forma de trejeitos ainda mais acentuados. Mas a atitude daquele que vive o
encontro com Genius como um
privilégio não é menos risível e vão, a
do poeta que adopta a pose e recita um personagem ou, pior, agradece com uma
humildade fingida pelas graças que lhe foram concedidas. Face a Genius não há grandes homens; todos são
igualmente pequenos. Mas alguns são suficientemente inconscientes para se
deixarem abanar e atravessar por ele até ao ponto de caírem em pedaços. Outros
ainda, mais sérios mas menos felizes, recusam-se a personalizar o impessoal, a
emprestarem os seus lábios a uma voz que não lhes pertence.
Há uma ética da relação
com Genius que define a categoria de
todo o ser. A categoria mais baixa pertence àqueles (e trata-se por vezes de
autores muito célebres) que conta com o seu próprio génio como com um
feiticeiro privado (“tudo me sorri”, “se tu, meu génio, não me abandonares”). O
gesto do poeta que prescinde desse sórdido cúmplice surge tanto mais amável e
mais sóbrio porque não ignora que “é a ausência de Deus que nos ajuda”.
(...)
Segundo Simondon, a emoção
é aquilo através do que nós entramos em contacto com o pré-individual.
Emocionar-se é sentir o impessoal que está em nós, fazer a experiência do Genius como angústia ou como alegria,
como segurança ou como susto.
No limiar da zona de
não-conhecimento, Eu deve depositar as suas propriedades, deve emocionar-se. E
a paixão é essa corda estendida entre nós e Genius
sobre a qual se passeia a nossa vida funâmbula. Bem antes de nos espantarmos
com o mundo exterior, o que nos maravilha e nos atinge é a presença em nós
próprios dessa parte para sempre imatura, infinitamente adolescente e que
hesita no limiar de cada individuação. E é efectivamente esse garoto evasivo
(...) que se obstina a lançar-nos na direcção dos outros nos quais não
procuramos senão a emoção que em nós resta incompreensível, esperando que por
milagre ela se esclareça e se elucide no espelho do outro. Se contemplar a
fruição e a paixão do outro constitui a emoção suprema, a primeira política, é
porque no outro procuramos essa relação com Genius
que somos incapazes de enfrentar sozinhos, o nosso delicioso segredo e a nossa
altiva agonia.
Com o tempo, Genius desdobra-se e começa a assumir
uma coloração ética. Tratar-se-á da influência do tema grego dos dois demónios
que habitam em cada homem? As fontes evocam um génio bom e um génio maldoso, um
Genius branco (albus) e um Genius negro
(ater). O primeiro aconselha-nos a
fazer o bem na direcção do qual nos empurra, o segundo inclina-nos para o mal e
corrompe-nos. Horácio não deixa sem dúvida de ter razão ao sugerir que se trata
de um único Genius mutável, ora
cândido ora tenebroso, por vezes sábio e por vezes depravado. O que significa,
se prestarmos ao assunto uma mínima atenção, que não é tanto o Genius que muda mas sim a relação que
mantemos com ele: outrora luminosa e clara, ela torna-se opaca e tenebrosa. O
nosso princípio vital, o companheiro que orienta a nossa vida e a torna
estimável, transforma-se subitamente num clandestino silencioso que segue cada
um dos nossos passos como uma sombra e conspira em segredo contra nós. A arte
romana representa assim os dois Genii
um ao lado do outro, um empunhando a tocha, e o outro, o mensageiro de morte,
que a inverte.
Através da sua moralização
tardia, o paradoxo de Genius
ilumina-se: se Genius é a nossa vida,
enquanto esta não nos pertence, então devemos responder por aquilo de que não
somos responsáveis, a nossa salvação como a nossa ruína têm uma face pueril que
é e que não é a nossa face.
(...)
De um modo ou de outro, todos temos de compor com
o nosso Genius , com o que não nos
pertence. O modo como cada um tenta distanciar-se de Genius, fugir dele, define o seu carácter. Esta é a careta que Genius, esquivado e deixado sem
expressão, inscreve na face de Eu. O estilo de um autor, como a graça de cada
criatura, depende porém menos do seu génio do que daquilo que em si se encontra
privado de génio, do seu carácter. É por isso que quando amamos alguém não
amamos precisamente o seu génio, nem o seu carácter (e menos ainda o seu Eu)
mas o modo especial que essa pessoa tem de se evadir deles, as suas idas e
vindas rápidas entre o seu génio e o seu carácter.
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